antígona – o palco como tribunal histórico
Sobre a Pessoa Autora
Licenciada em Estudos Portugueses e Mestre em Ciências da Linguagem, variante de Linguística, pela FCSH/NOVA, onde obteve o "Prémio de Mérito e Excelência Melhores Licenciados" (2016) e o "Prémio de Mérito e Excelência Melhores Mestres" (2018). Tem um diploma de Estudos Avançados em Estudos Portugueses, variante de Estudos Literários. Representou Portugal na XVI Edición del Programa Jóvenes Líderes Iberoamericanos e no 64º Corso Giovanile Internazionale Rotariano. É colaboradora na Associação Internacional Almada Mundo, onde, entre outras atividades, dá workshops regulares de literatura. Atualmente, encontra-se a fazer investigação a nível de Doutoramento.
Resumo
Antígona de Sófocles é uma das peças-chave do pensamento europeu. A partir dela surgem várias representações, recriações e leituras um pouco por todo o mundo e, com ênfase especial, no continente sul-americano. Uma dessas recriações é a peça Antígonas Tribunal de Mujeres (2013) do dramaturgo e poeta colombiano Carlos Eduardo Satizábal. Esta peça traz para o palco, transformado em tribunal simbólico, algumas das vítimas, até aí silenciadas, do conflito armado colombiano. O presente ensaio foca-se no modo como a peça de Satizábal, em diálogo constante com a Antígona seminal de Sófocles, se revela um mecanismo de persecução de justiça; e na maneira como o teatro pode ser pensado como tribunal da História. Por outro lado, nele se repensa o papel que as mulheres podem ocupar face ao poder, usualmente centrado nas mãos dos homens.
«Antígona: Creonte não tem o direito de privar-me dos meus.
(...)
Ismena: Pensa, antes de mais nada, que somos mulheres, e que, como tais, não podemos lutar contra os homens; pensa também que estamos submetidas a pessoas mais poderosas do que nós, e que portanto nos é forçoso obedecer às suas ordens, por muito rigorosas que sejam.»
– Sófocles, Antígona
Há muito que a personagem Antígona de Sófocles ultrapassou os limites do contexto em que foi criada e se tornou universal. O livro Antigone on the Contemporary World Stage (2011), de Erin Mee e Helene Foley, foca-se nas produções que surgiram após a Segunda Guerra Mundial e que, de um modo ou de outro, tiveram como fundo a peça de Sófocles ou a sua protagonista. O mesmo demonstra como, um pouco por todo o mundo [1], estas têm vindo a ser interpretadas, reinterpretadas e utilizadas nas mais diversas situações e com os mais variados objetivos, destacando-se Antígona como um meio de articular «os problemas das nações modernas» (Mee & Foley 2011, 125) [2].
Ao escolher encenar Antígona ou utilizar esta personagem em palco, adota-se um posicionamento numa linha que tem vindo a ser continuamente redesenhada por todas as Antígonas postas em cena, com as suas circunstâncias próprias, de resistência e de rebeldia contra o poder. A Antígona deixou de ser só uma e deixou de ser apenas de Sófocles, para se multiplicar nas suas inúmeras e incontáveis apropriações e recriações e, também por isso, «o texto que contém o seu nome serve como chamada para perturbar paisagens interpretativas fixas, para rearranjar hierarquias, para realinhar fronteiras, para ultrapassar limites, para reimaginar futuros» (Chanter & Kirkland 2012, 19) [3]. Ademais, cada vez que esta personagem sobe ao palco, ou sempre que uma peça, de modo direto ou velado, lhe faz referência, é possível refletir sobre injustiças e conflitos desde uma perspetiva histórica, frisando a manutenção de certos problemas, em permanente alteração e em permanente acontecer [4].
Figura 1 - Quadro Antigone (1882) de Frederic Leighton, no estilo académico e sóbrio característico deste pintor. A cara do retrato foi modelada a partir da atriz inglesa Dorothy Dene e representa o momento em que Antígona ouve o veredicto de Creonte, que a condena à morte.
A peça de Satizábal traz a jogo duas importantes referências que urgem ser pensadas no contexto da sua obra. Em primeiro lugar, a referência à Antígona, símbolo da resistência feminina por excelência. Finalmente, a noção de “tribunal”, local onde se julgam os crimes cometidos e se tomam decisões legais. Por isso, neste ensaio, reflete-se, a dois tempos, sobre a escolha da Antígona no contexto da peça de Satizábal e sobre as potencialidades da arte, neste caso o teatro, como um possível tribunal da História. Numa primeira parte, pensa-se a Antígona de Sófocles em relação às “Antígonas colombianas” de Satizábal, para tentar estabelecer possíveis paralelismos. Numa segunda parte, comenta-se as potencialidades de ver e pensar o palco como um possível tribunal da história.
Como menciona Satizábal [8], adicionando-se à existência e resistência original da Antígona seminal as vivências e lutas das mulheres colombianas participantes na peça, transformadas em Antígonas elas mesmas, a figura primordial da Antígona grega vê-se aumentada e enriquecida. Tal como a Antígona grega procura dar um enterro digno a seu irmão, quando mais nenhuma personagem da peça o ousa fazer, assim também na peça de Satizábal são mulheres a vir a palco apresentar os seus casos, o que constitui um dos vários paralelismos que podem ser estabelecidos entre a Antígona de Sófocles e as Antígonas de Satizábal – a atuação e contestação feminina ao poder institucional, tradicionalmente masculino. Isto justifica o porquê de na peça colombiana participarem somente mulheres atrizes e as personagens serem, na sua quase totalidade, femininas, à exceção da personagem masculina Tirésias, que atua como a voz da razão [9].
Figura 2 – Desenho de Antígona e Ismena pelo autor E. Cobham Brewer, presente no seu livro Character Sketches of Romance, Fiction and the Drama (1892). Nesta obra encontram-se centenas de esboços de enredos conhecidos, juntamente com curiosidades sobre os mesmos.
«De que vai falar o meu livro? Lá vamos nós, mais um livro sobre a guerra... Para quê? Já houve milhares de guerras, grandes e pequenas, conhecidas e desconhecidas. E escreve-se tanto sobre elas. Ainda assim... Escreveram homens e sobre homens: isto ficou logo claro. Tudo o que sabemos sobre a guerra chegou até nós através da ‘voz masculina’. Somos todos prisioneiros das noções ‘masculinas’ e das sensações ‘masculinas’ da guerra. Das palavras ‘masculinas’. E as mulheres estão caladas. (...) Os relatos femininos são diferentes e falam de coisas diferentes. A guerra ‘feminina’ tem as suas cores, os seus cheiros, a sua iluminação e o seu espaço de sentimentos. Tem as suas palavras» (15-16; itálico nosso).
Por outro lado, se na Antígona de Sófocles a personagem Antígona encontra em Creonte, que acumula em si todos os poderes – legislativo, executivo e judicial – o seu antagonista, as Antígonas do Tribunal de Mulheres encontram no Estado o seu. O Creonte de Sófocles está, porém, presente na peça, tendo uma voz, enquanto que na peça de Satizábal o Estado não tem presença viva e real em palco, senão como sendo o motivo pelo qual aquelas Antígonas existem e estão ali a narrar as suas histórias. O foco está concentrado nas mulheres e nas histórias que estas contam. O Estado colombiano é despojado de voz porque o que aqui interessa é precisamente apresentar uma versão não oficial, não canónica e, mesmo, inconveniente da História; lutar contra um discurso unidirecional, uma perspetiva única da narrativa oficial, quantas vezes dominada pelos interesses de uma política controladora; contestar uma dada esfera do conhecimento – fechada, criada por apenas alguns; e apresentar algo mais que não seja somente aquilo que convém dizer, saber e pensar num dado momento, naquela sociedade, dando espaço a uma multiplicidade de perspetivas.Como recorda Satizábal (2015, 264),
«É necessário na Colômbia – como em qualquer sociedade que sofreu uma guerra – elaborar a poetização da memória silenciada, fazê-lo de muitos modos e em todas as linguagens. E fazê-lo com aqueles que viveram os desastres da guerra e conhecem a intimidade da dor. Renunciar à tentação de interpretar as suas vozes: facilitar que desde a singularidade, desde a periferia, as memórias dos grupos de familiares, de vítimas, das comunidades sem meios, construam os relatos das suas memórias inéditas para que avancemos em direção à consolidação de um relato nacional polifónico. Um relato onde a polifonia não seja de silenciamentos ou falsificações dos factos mas poética, musical, novelística, cinematográfica, teatral, coreográfica, pictórica, performativa. E conflituosa. Sobretudo conflituosa. O mesmo é dizer, que não vitimize as vítimas mas que revele a sua luta, os seus desejos, as suas procuras. Uma memória rebelde. Resistente e polifónica. Uma polifonia de vozes e linguagens que derrote a desmemória e a dominação» [11].
Figura 3 - Apresentação da peça Antígonas Tribunal de Mujeres em junho de 2016, na Corporación Colombiana de Teatro em Bogotá. © Guillermo Torres
Finalmente, se a Antígona original não quer deixar o seu irmão insepulto pois, desse modo, esse nunca poderia alcançar Hades, e ficaria impossibilitado de aceder ao descanso eterno, exposto aos animais e às intempéries, indigno da sua condição, as Antígonas colombianas, impossibilitadas de se despedirem devidamente dos seus familiares, cuja localização desconhecem, e de irem visitar as suas campas, atirados como foram muitas vítimas dos conflitos para valas comuns [12], partilham com a Antígona seminal a vontade de quererem levar a termo os destinos dos seus amados. Estas Antígonas colombianas não querem deixar os seus familiares “insepultos” de justiça e trazem, por isso, para o palco, transformado em tribunal simbólico, as suas histórias, que tornam possível, não só recordar, mas também dignificar os que perderam.
Figura 4 - Lucero Carmona, uma das Madres de Soacha, associação constituída por mulheres familiares dos homens civis assassinados pelo Exército Nacional da Colômbia, depois de serem injustamente acusados de pertencerem a grupos guerrilheiros, representa-se a si mesma em Antígonas Tribunal de Mujeres. © Guillermo Torres
Todavia, enquanto no tribunal a palavra do juiz, normalmente, ultima um caso ou uma situação, no teatro, assim como na arte, raramente há fechamento. Como reflete Eduardo Pellejero (2017, 11):
«[A arte] não admite ponto final, nem em geral nenhum tipo de pontuação histórica. Diz Guernica e ao mesmo tempo, pelo mesmo gesto, diz Bagdad, Tahrir, Gaza, Ayotzinapa. Intempestivamente, eternamente, apresenta um recurso, e nos torna testemunhas, inclusive do que não vimos nem poderíamos ter visto, colocando-o, através dos artifícios da forma, à nossa frente. De resto, a execução da justiça, o seu devir-mundo, dependem sempre e para sempre de nós».
A encenação de tribunal que Satizábal cria permite, de um modo mais óbvio, trazer um pouco de paz e de justiça àquelas Antígonas colombianas, ali a advogarem, diretamente, sem intermediários ou subterfúgios, as suas próprias posições. Todavia, como essas mulheres e as suas histórias nada mais são do que uma pequena amostra do que a nível nacional sucede, é possível pensar num alargamento do cenário do tribunal a todas as mulheres colombianas que padeceram, de um modo ou de outro, num momento ou noutro, direta ou indiretamente, no conflito. Do mesmo modo, e por analogia, é possível, ainda, pensar num alargamento desse tribunal a todas as Antígonas da história, isto é, todos aqueles que, de diversas maneiras, têm vindo a sofrer, quantas vezes em silêncio, devido a conflitos que quantas vezes nem sequer lhes dizem respeito. Finalmente, a própria Antígona histórica de Sófocles, que não obteve justiça nem foi devidamente julgada inocente dos seus atos, vem também a tribunal e, por meio daquelas mulheres que a personificam, continua a lutar pela sua escolha de enterrar o irmão. Ao afirmar, logo numa das primeiras falas proferidas na peça, «o meu nome é Antígona e há mais de 3000 anos estou a tentar enterrar o meu irmão Polinices» [13] (Satizábal apud Castañeda Cañón 2018, 107), transmite a ideia de que a sua tarefa de enterrar o irmão, leia-se, a de buscar justiça e procurar respostas na lei moral, que está acima da humana, ainda não está terminada.Figura 5 - Quadro Antígona Frente a Polinices Morto (1865), de Nikolos Lytras, que se encontra na Galeria Nacional da Grécia. Esta obra integra a primeira fase da carreira do pintor grego, inspirada na mitologia e história do seu país, correspondente à altura em que foi aprendiz de Karl von Piloty, grande pintor realista alemão.
De modo complementar, é também possível pensar que ali, naquele “tribunal”, ainda que ausentes, são trazidos à justiça os “Creontes colombianos”, ou seja, todos aqueles que podem ter contribuído para o conflito; os Creontes do mundo, que envolvem todos os que têm contribuído para a criação e a perpetuação de conflitos; e, por último, o Creonte grego original.
Do ponto de vista do leitor e do espectador, estar com aquelas mulheres, em simultâneo, no tribunal, testemunhas das suas histórias e do momento em que, através das suas palavras vindas a público, exigem para si mesmas o início de um processo de renovação e de pacificação, e em tribunal – pois quem é completamente livre de falhas? Quem é, durante toda a sua vida, inteiramente justo? Quem nunca erra, por gestos, ausências, palavras? Quem é, sempre, senhor de si mesmo, e capaz de combater ou de não olhar para o lado aquando das injustiças cometidas a outros? –, transmite um sentido que nos aproxima dos crimes e das injustiças cometidas.
Estas Antígonas não se tratam de personagens distantes, inalcançáveis, mas antes de mulheres comuns, do dia a dia, de todos os dias e relembram como, a todos os momentos, em todas as sociedades, se corre o risco de, por circunstâncias que ultrapassam os indivíduos, se ver alvo de injustiças e de opressões.
De cada vez que aparecem em palco, de cada vez que são lidas, estas mulheres, cujas histórias fortemente se entrelaçam na história recente do seu país, transformam palavras e pensamentos até aí descompassados em histórias, histórias doravante cristalizadas em memórias, tornando o passado não morto e enterrado, mas antes pulsante, próximo, passível de ser vivenciado e, até certo ponto, revisitado. E essa é uma das grandes virtudes da criação artística em geral, e do teatro em particular – o dar a ver. Para além do óbvio, do que julgamos que já sabemos, mas, afinal, apenas entrevimos, ou, até, do que totalmente desconhecíamos, podemos aceder a diversas versões colocadas em confronto que nos permitem considerar um acontecimento histórico, mesmo se distante, já ali presente, aproximado, e, partindo das interrogações apresentadas por outros, colocar as nossas próprias questões, aquelas que não se podem esconder por detrás da máscara sempre errónea da verdade ou da certeza. Não nos dizendo como atuar, como pensar, como reagir, esta peça apresenta um conjunto de histórias pessoais, postas à nossa consideração, contribuindo para combater o desconhecimento ou silenciamento em relação às histórias femininas, tantas vezes opressores.
Para citar este ensaio:
Souto, Ana Sofia. 2021. “Antígona – O Palco como Tribunal Histórico.” Palimpsesto. www.palimpsesto.online/ensaios/antigona-o-palco-como-tribunal-historico.
referências ↓
Aleixievich, Svetlana. 2016. A Guerra Não Tem Rosto de Mulher. Lisboa: Elsionore.
Castañeda Cañón, María José. 2018. “Antígonas Tribunal de Mujeres: Poética de una Memoria Reparadora.” Dissertação de Mestrado, Colômbia: Pontificia Universidad Javeriana. https://repository.javeriana.edu.co/handle/10554/36234.
Chanter, Tina & Sean Kirkland (Eds.). 2012. The Returns of Antigone: Interdisciplinary Essays. Albany: SUNY Press.
Gotsi, Aikaterini. 2012. Irish Antigones. Dissertação de Doutoramento, Reino Unido: University College London. https://discovery.ucl.ac.uk/id/eprint/1344017/1/1344017.pdf.
Mee, Erin & Helene Foley (Eds.). 2011. Antigone on the Contemporary World Stage. Nova Iorque: Oxford University Press.
Pellejero, Eduardo. 2017. “Justiça Poética. A Literatura Além do Ponto Final.” Caderno de Leituras 59, 1-12. https://chaodafeira.com/catalogo/caderno-n-59-justica-poetica-a-literatura-alem-do-ponto-final/.
Satizábal, Carlos Eduardo. 2015. “Memoria Poética y Conflicto en Colombia – A Propósito de Antígonas Tribunal de Mujeres, de Tramaluna Teatro”. Revista Colombiana de las Artes Escénicas 9, 250-268. http://vip.ucaldas.edu.co/artescenicas/downloads/artesescenicas9_22.pdf.
Sófocles. 2000. Antígona. Lisboa: Inquérito.