antígona – o palco como tribunal histórico

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Sobre a Pessoa Autora

Licenciada em Estudos Portugueses e Mestre em Ciências da Linguagem, variante de Linguística, pela FCSH/NOVA, onde obteve o "Prémio de Mérito e Excelência Melhores Licenciados" (2016) e o "Prémio de Mérito e Excelência Melhores Mestres" (2018). Tem um diploma de Estudos Avançados em Estudos Portugueses, variante de Estudos Literários. Representou Portugal na XVI Edición del Programa Jóvenes Líderes Iberoamericanos e no 64º Corso Giovanile Internazionale Rotariano. É colaboradora na Associação Internacional Almada Mundo, onde, entre outras atividades, dá workshops regulares de literatura. Atualmente, encontra-se a fazer investigação a nível de Doutoramento.


Resumo

Antígona de Sófocles é uma das peças-chave do pensamento europeu. A partir dela surgem várias representações, recriações e leituras um pouco por todo o mundo e, com ênfase especial, no continente sul-americano. Uma dessas recriações é a peça Antígonas Tribunal de Mujeres (2013) do dramaturgo e poeta colombiano Carlos Eduardo Satizábal. Esta peça traz para o palco, transformado em tribunal simbólico, algumas das vítimas, até aí silenciadas, do conflito armado colombiano. O presente ensaio foca-se no modo como a peça de Satizábal, em diálogo constante com a Antígona seminal de Sófocles, se revela um mecanismo de persecução de justiça; e na maneira como o teatro pode ser pensado como tribunal da História. Por outro lado, nele se repensa o papel que as mulheres podem ocupar face ao poder, usualmente centrado nas mãos dos homens.

 
 

«Antígona: Creonte não tem o direito de privar-me dos meus. (...) Ismena: Pensa, antes de mais nada, que somos mulheres, e que, como tais, não podemos lutar contra os homens; pensa também que estamos submetidas a pessoas mais poderosas do que nós, e que portanto nos é forçoso obedecer às suas ordens, por muito rigorosas que sejam.»

– Sófocles, Antígona


Há muito que a personagem Antígona de Sófocles ultrapassou os limites do contexto em que foi criada e se tornou universal. O livro Antigone on the Contemporary World Stage (2011), de Erin Mee e Helene Foley, foca-se nas produções que surgiram após a Segunda Guerra Mundial e que, de um modo ou de outro, tiveram como fundo a peça de Sófocles ou a sua protagonista. O mesmo demonstra como, um pouco por todo o mundo [1], estas têm vindo a ser interpretadas, reinterpretadas e utilizadas nas mais diversas situações e com os mais variados objetivos, destacando-se Antígona como um meio de articular «os problemas das nações modernas» (Mee & Foley 2011, 125) [2].

Ao escolher encenar Antígona ou utilizar esta personagem em palco, adota-se um posicionamento numa linha que tem vindo a ser continuamente redesenhada por todas as Antígonas postas em cena, com as suas circunstâncias próprias, de resistência e de rebeldia contra o poder. A Antígona deixou de ser só uma e deixou de ser apenas de Sófocles, para se multiplicar nas suas inúmeras e incontáveis apropriações e recriações e, também por isso, «o texto que contém o seu nome serve como chamada para perturbar paisagens interpretativas fixas, para rearranjar hierarquias, para realinhar fronteiras, para ultrapassar limites, para reimaginar futuros» (Chanter & Kirkland 2012, 19) [3]. Ademais, cada vez que esta personagem sobe ao palco, ou sempre que uma peça, de modo direto ou velado, lhe faz referência, é possível refletir sobre injustiças e conflitos desde uma perspetiva histórica, frisando a manutenção de certos problemas, em permanente alteração e em permanente acontecer [4].

[2]
«the problems of modern nations»

[1]
Na Irlanda, um dos países em que esta peça tem vindo a ser encenada com mais força, trazendo à tona problemas e condicionalismos políticos, vieram à luz, a partir da década de 1980, as peças Antigone de Aidan Mathews (1984), Sophocles’ Antigone, A New Version de Brendan Kennelly (2001 [1986]), Sophocles’ Antigone, in a New Version de Declan Donnellan (1999) e The Burial at Thebes: Sophocles’ Antigone de Seamus Heaney (2004), entre outras, assistindo-se neste território a um ressurgimento recente da presença de Sófocles. Na Turquia, pode ser destacada a peça Eurydice’s Cry (2006) de Sahika Tekand, que apresenta uma reflexão sobre os direitos humanos naquele país. Já nos Estados Unidos, pode ser apontada a peça Antigone: Insurgency (2007) de Adam Seelig, referente a algumas medidas estatais instituídas após o 11 de Setembro. Em Itália, é de destacar a peça Antigona (2012) de Valeria Parrela, usada para lidar com questões relacionadas com a eutanásia. Em Espanha, surgiram, entre outras, as peças Antígona entre muros (1988) de José Martín Elizondo, Antígona, a forza do sangue (1989) e Antígona. A cartucheira (2008) de María Xozé Queizán. Refiram-se, ainda, no Chile, a peça Antígona (historia de objetos perdidos) de Daniela Cápona Pérez (2002); na Argentina, as peças Antígona Vélez de Leopoldo Marechal (1951), El Límite de Alberto de Zavalía (1959), Antígona Furiosa de Giselda Gambaro (1986), e Antígonas, Linage de Hembrás de Jorge Huertas (2001); em Porto Rico, a peça de Luis Rafael Sánchez's, La pasión según Antígona Pérez (1968); e, muito recentemente, no Brasil, a peça Antígona: Ensaio sobre a Tirania (2019), apenas para dar alguns exemplos que demonstram como se dá uma enorme continuidade em diversas tradições literárias e linguísticas do mito e da peça grega na atualidade.

[3]
«the text that bears her name serves as a call to disrupt settled interpretative landscapes, to rearrange hierarchies, to realign borders, to cross boundaries, to reimagine futures»

[4]
De que modo se alteraram os direitos das mulheres como participantes ativas nas suas sociedades entre o período clássico e a atualidade? As mulheres já têm as mesmas oportunidades de participação em posições de poder, na ciência, na indústria e na política? As mulheres têm acesso aos mesmos salários que os homens? As mulheres e os homens têm os mesmos direitos perante a lei? Como é vista, pensada e representada a mulher na Grécia Antiga e na atualidade?
E a justiça, como se comporta? E como se tem vindo a alterar o seu comportamento ao longo dos anos e em diferentes sociedades?
Estas são algumas perguntas que podem ser depreendidas da leitura da peça de Satizábal, se pensada em relação com a de Sófocles.

 
Figura 1 - Quadro Antigone (1882) de Frederic Leighton, no estilo académico e sóbrio característico deste pintor. A cara do retrato foi modelada a partir da atriz inglesa Dorothy Dene e representa o momento em que Antígona ouve o veredicto de Creont…

Figura 1 - Quadro Antigone (1882) de Frederic Leighton, no estilo académico e sóbrio característico deste pintor. A cara do retrato foi modelada a partir da atriz inglesa Dorothy Dene e representa o momento em que Antígona ouve o veredicto de Creonte, que a condena à morte.

 
O presente ensaio foca-se numa recriação recente do clássico grego de Sófocles, a peça Antígonas Tribunal de Mujeres (link), apresentada pela primeira vez na Colômbia, em 2014. Este trabalho coletivo, esforço conjunto de três atrizes profissionais e de seis vítimas do conflito armado colombiano, foi criado pelo Teatro Tramulana, pertencente à Corporación Colombiana de Teatro e posta em cena pelo seu autor e diretor, Carlos Eduardo Satizábal. As mulheres em palco são “Madres de Falsos Positivos de Soacha y Bogotá”, líderes estudantis que foram vítimas de perseguição política e membros do “Colectivo de Abogados José Alvear Restrepo”, e vêm contar as suas histórias. As atrizes profissionais representam várias personagens diferentes, nomeadamente, entre outras, “Ismena”, “Antígona”, “Antígona enterrada viva”, “Tirésias”, “Narradoras”, e “a fiscal”. Contrariamente, as participantes autênticas, i.e., não atrizes – Lucero, Fanny Palacios, Orceni Montañez, Luz Marina Bernal e Mayra López Severiche – não representam uma determinada personagem ou papel, nem têm de o fazer, uma vez que se encarnam a si mesmas [5], obtendo, no espaço do palco, pela primeira vez, a possibilidade de fazer ouvir a sua voz. Vindas a palco, transformado em tribunal simbólico, estas “Antígonas modernas” realizam duas ações. Por um lado, lutam contra a negação dos seus direitos e o desprezo dos seus sofrimentos, vindo «protestar, reclamar, denunciar» e «pedir justiça, justiça e verdade e compromisso de não repetição» [6]. Por outro, propõem uma renovação social, ancorada num projeto de paz, para o seu país: «Este tribunal de mulheres deseja que este país possa chegar um dia, ao dia do NUNCA JAMAIS. (...) Nunca jamais mortes, nunca jamais falsos positivos, nunca jamais massacres, nunca jamais filhos insepultos, nunca jamais violações» (Satizábal apud Castañeda Cañón 2018, 100) [7].

A peça de Satizábal traz a jogo duas importantes referências que urgem ser pensadas no contexto da sua obra. Em primeiro lugar, a referência à Antígona, símbolo da resistência feminina por excelência. Finalmente, a noção de “tribunal”, local onde se julgam os crimes cometidos e se tomam decisões legais. Por isso, neste ensaio, reflete-se, a dois tempos, sobre a escolha da Antígona no contexto da peça de Satizábal e sobre as potencialidades da arte, neste caso o teatro, como um possível tribunal da História. Numa primeira parte, pensa-se a Antígona de Sófocles em relação às “Antígonas colombianas” de Satizábal, para tentar estabelecer possíveis paralelismos. Numa segunda parte, comenta-se as potencialidades de ver e pensar o palco como um possível tribunal da história.

Como menciona Satizábal [8], adicionando-se à existência e resistência original da Antígona seminal as vivências e lutas das mulheres colombianas participantes na peça, transformadas em Antígonas elas mesmas, a figura primordial da Antígona grega vê-se aumentada e enriquecida. Tal como a Antígona grega procura dar um enterro digno a seu irmão, quando mais nenhuma personagem da peça o ousa fazer, assim também na peça de Satizábal são mulheres a vir a palco apresentar os seus casos, o que constitui um dos vários paralelismos que podem ser estabelecidos entre a Antígona de Sófocles e as Antígonas de Satizábal – a atuação e contestação feminina ao poder institucional, tradicionalmente masculino. Isto justifica o porquê de na peça colombiana participarem somente mulheres atrizes e as personagens serem, na sua quase totalidade, femininas, à exceção da personagem masculina Tirésias, que atua como a voz da razão [9].

[5]
«Apresentam ou elaboraram», como reflecte Satizábal, «uma representação ou uma poetização da sua presença» (2015, 264).

No original: «Presentan o han elaborado una representación o una poetización de su presencia».

[6]
«pedir justicia, justicia y verdad y compromiso de no repetición»

[7]
«Este tribunal de mujeres busca que este país pueda llegar algún día, al día del NUNCA JAMÁS. (...) Nunca jamás muertes, nunca jamás falsos positivos, nunca jamás masacres, nunca jamás hijos insepultos, nunca jamás violaciones»

[8]
«(…) procuramos equivalências entre o vivenciado pelas mulheres e as personagens e incidentes de Antígona. Nesse processo, os incidentes e a personagem do mito impregna-se do vivido e relatado pelas nossas companheiras» (2015, 256).

No original: «(...) buscamos equivalencias entre lo vivido por las mujeres y los personajes e incidentes de Antígona. En el proceso, los incidentes y el personaje del mito se impregna de lo vivido y relatado por nuestras compañeras».

[9]
Recorde-se o papel de Tirésias como o que possui um conhecimento acima da média e é capaz de visualizar o que os olhos comuns não alcançam. A determinado momento, esta personagem alerta:
«O que será da nossa terra?... Perguntei-o às aves, mas o seu canto enlouqueceu, alimentaram-se dos mortos e agora os seus cantos são indecifráveis. Perguntei-o à chama dos sacrifícios, mas a gordura não arde, e o fogo não sobe. (Levanta muito alto a sua voz, rouca, sombria).
Bebi a erva dos sonhos (ri), e vi o pesadelo. Vi as tumbas sem nomes e os corpos despedaçados nelas. Também ouvi o grito dos meus irmãos mortos que foram atirados aos fornos dos trapiches da cana. E escutei... escutei o estrondo das gadanhas e das motosserras.
Também ouvi os filhos mortos falando às suas mães nos sonhos e mostrando-lhes os caminhos até às suas tumbas anónimas. (María entra em cena. Tirésias chega ao proscénio).
Ouvi e vi tudo isto, mas vocês, vocês, vocês: já não ouvem nem veem nada. Por isso vim a este tribunal pedir-lhes que gritem comigo» (Satizábal apud Castañeda Cañón 2018, 103).

No original: «¿Qué será de nuestro pueblo?... Le pregunté a las aves, pero su canto ha enloquecido, comieron de los muertos y ahora sus cantos son indescifrables. Le pregunté a la llama de los sacrificios, pero la grasa no arde, y el fuego no asciende. (Levanta muy alto su voz, ronca, oscura).
Bebí la hierba de los sueños (ríe), y vi la pesadilla. Vi las tumbas sin nombres y los cuerpos despedazados en ellas. También oí el grito de mis hermanos muertos que fueron arrojados a los hornos de los trapiches de las caña. Y escuché... escuché el estruendo de las guadañas y las motosierras.
También oí a los hijos muertos hablándoles en sueños a sus madres y mostrándoles el camino hacia sus tumbas anónimas. (Entra María al escenario. Tiresias llega al proscenio).
He oído y visto todo esto, pero ustedes, ustedes, ustedes: ya no oyen ni ven nada. Por eso he venido a este tribunal a pedirles que griten conmigo
».

 
Figura 2 – Desenho de Antígona e Ismena pelo autor E. Cobham Brewer, presente no seu livro Character Sketches of Romance, Fiction and the Drama (1892). Nesta obra encontram-se centenas de esboços de enredos conhecidos, juntamente com curiosidades so…

Figura 2 – Desenho de Antígona e Ismena pelo autor E. Cobham Brewer, presente no seu livro Character Sketches of Romance, Fiction and the Drama (1892). Nesta obra encontram-se centenas de esboços de enredos conhecidos, juntamente com curiosidades sobre os mesmos.

 
Ao escolher ir contra as ordens de Creonte – representante do poder absoluto e supostamente incombatível, que ordena o não enterramento de Polinice e tantos outros não farás, não dirás, não falarás, ou, irás e não questionarás – a Antígona de Sófocles está conscientemente a resistir ao poder, a fazer algo que mais ninguém ali faria, incluindo a sua irmã Ismena – caminhando contra o estabelecido, o dado, aquilo que seria o suposto de alguém “subordinado”. O facto de, no caso de Antígona, a transgressão ao poder, e, no caso das Antígonas colombianas, a demanda por uma justiça que esteja à altura das suas expectativas e daquilo que sentem merecer, vir de mulheres [10], aumenta o seu impacto e o seu efeito dramático, já que em muitas ocasiões as mulheres veem os seus direitos negados e as suas vozes silenciadas, e raramente vêm a público as versões femininas dos conflitos. Tal como trabalhado na obra A Guerra Não Tem Rosto de Mulher de Svetlana Aleixievich, que trata das memórias de mulheres bielorrussas que estiveram envolvidas na Segunda Guerra Mundial, opondo-se a uma história de guerra vista, representada e pensada sob o prisma masculino, o sexo feminino, vulto escondido dos conflitos, tem a sua própria história a contar, história essa que não pode ser suprimida nem negada:

«De que vai falar o meu livro? Lá vamos nós, mais um livro sobre a guerra... Para quê? Já houve milhares de guerras, grandes e pequenas, conhecidas e desconhecidas. E escreve-se tanto sobre elas. Ainda assim... Escreveram homens e sobre homens: isto ficou logo claro. Tudo o que sabemos sobre a guerra chegou até nós através da ‘voz masculina’. Somos todos prisioneiros das noções ‘masculinas’ e das sensações ‘masculinas’ da guerra. Das palavras ‘masculinas’. E as mulheres estão caladas. (...) Os relatos femininos são diferentes e falam de coisas diferentes. A guerra ‘feminina’ tem as suas cores, os seus cheiros, a sua iluminação e o seu espaço de sentimentos. Tem as suas palavras» (15-16; itálico nosso).

Por outro lado, se na Antígona de Sófocles a personagem Antígona encontra em Creonte, que acumula em si todos os poderes – legislativo, executivo e judicial – o seu antagonista, as Antígonas do Tribunal de Mulheres encontram no Estado o seu. O Creonte de Sófocles está, porém, presente na peça, tendo uma voz, enquanto que na peça de Satizábal o Estado não tem presença viva e real em palco, senão como sendo o motivo pelo qual aquelas Antígonas existem e estão ali a narrar as suas histórias. O foco está concentrado nas mulheres e nas histórias que estas contam. O Estado colombiano é despojado de voz porque o que aqui interessa é precisamente apresentar uma versão não oficial, não canónica e, mesmo, inconveniente da História; lutar contra um discurso unidirecional, uma perspetiva única da narrativa oficial, quantas vezes dominada pelos interesses de uma política controladora; contestar uma dada esfera do conhecimento – fechada, criada por apenas alguns; e apresentar algo mais que não seja somente aquilo que convém dizer, saber e pensar num dado momento, naquela sociedade, dando espaço a uma multiplicidade de perspetivas.

Como recorda Satizábal (2015, 264),

«É necessário na Colômbia – como em qualquer sociedade que sofreu uma guerra – elaborar a poetização da memória silenciada, fazê-lo de muitos modos e em todas as linguagens. E fazê-lo com aqueles que viveram os desastres da guerra e conhecem a intimidade da dor. Renunciar à tentação de interpretar as suas vozes: facilitar que desde a singularidade, desde a periferia, as memórias dos grupos de familiares, de vítimas, das comunidades sem meios, construam os relatos das suas memórias inéditas para que avancemos em direção à consolidação de um relato nacional polifónico. Um relato onde a polifonia não seja de silenciamentos ou falsificações dos factos mas poética, musical, novelística, cinematográfica, teatral, coreográfica, pictórica, performativa. E conflituosa. Sobretudo conflituosa. O mesmo é dizer, que não vitimize as vítimas mas que revele a sua luta, os seus desejos, as suas procuras. Uma memória rebelde. Resistente e polifónica. Uma polifonia de vozes e linguagens que derrote a desmemória e a dominação» [11].

[10]
Segundo Satizábal, na Colômbia, as mulheres lideram a procura da verdade e da justiça: «Durante este longo trabalho de investigação observa-se que a procura da elaboração criadora do luto, da verdade e da justiça, tem sido, também na Colômbia, fundamentalmente liderada pelas mulheres» (Satizábal 2015, 254).

No original: «En este largo trabajo de investigación se ve que la búsqueda de la elaboración creadora del duelo, de la verdad y de la justicia, también en Colombia está fundamentalmente liderada por las mujeres».

[11]
«Es necesario en Colombia – como en toda sociedad que haya padecido una guerra – elaborar la poetización de la memoria silenciada, hacerlo de muchos modos y en todos los lenguajes. Y hacerlo con quienes han vivido los desastres de la guerra y conocen la intimidad del dolor. Renunciar a la tentación de interpretar sus voces: facilitar que desde la singularidad, desde la periferia, las memorias de los grupos de familiares, de víctimas, de las comunidades sin medios, construyan los relatos de sus memorias inéditas para que avancemos hacia la consolidación de un relato nacional polifónico. Un relato donde la polifonía no sea de silenciamientos o falsificaciones de los hechos sino poética, musical, novelística, cinematográfica, teatral, dancística, pictórica, performática. Y conflictiva. Sobre todo conflictiva. Es decir, que no victimiza a las víctimas sino que revela su lucha, sus anhelos, sus búsquedas. Una memoria rebelde. Resistente y polifónica. Una polifonía de voces y lenguajes que derrote la desmemoria y la dominación.»

 
Figura 3 - Apresentação da peça Antígonas Tribunal de Mujeres em junho de 2016, na Corporación Colombiana de Teatro em Bogotá. © Guillermo Torres

Figura 3 - Apresentação da peça Antígonas Tribunal de Mujeres em junho de 2016, na Corporación Colombiana de Teatro em Bogotá. © Guillermo Torres

 
Criando uma polifonia de meios artísticos (cada um com as suas potencialidades e as suas impossibilidades, passíveis de serem complementadas por outras formas de arte), traz-se à superfície uma pluralidade de vozes – provenientes dos mais diversos espaços e contextos, como as vozes solitárias, portadoras de uma perspetiva original e abaladora, e aquelas que vêm das margens e que, normalmente, não têm oportunidade de expor os seus pontos de vista. Deste modo, consegue-se, talvez, colorir a tela do acontecido de várias cores que permitem o surgimento de uma memória coletiva preenchida por muitas memórias individuais ao invés de uma desmemória, uma memória criada, ou uma memória falsa ou incompleta, pertencente a uma pequena fação da sociedade, que domina e submete as restantes pelos seus ditos e feitos. Para que a verdade do povo não se torne outra vítima da guerra, um outro instrumento de opressão dos perpetradores dessa mesma guerra. Daí que esta peça de Satizábal não possa ser mais do que um iniciar lento de um processo demorado, e seja preciso, através de outros métodos e ferramentas, continuar a lidar com este acontecimento histórico, não caindo na tentação de vitimizar as vítimas, pois que isso seria já atentar contra o propósito abrangente e plural da criação artística, denominando as vítimas de “vítimas” e nada mais.

Finalmente, se a Antígona original não quer deixar o seu irmão insepulto pois, desse modo, esse nunca poderia alcançar Hades, e ficaria impossibilitado de aceder ao descanso eterno, exposto aos animais e às intempéries, indigno da sua condição, as Antígonas colombianas, impossibilitadas de se despedirem devidamente dos seus familiares, cuja localização desconhecem, e de irem visitar as suas campas, atirados como foram muitas vítimas dos conflitos para valas comuns [12], partilham com a Antígona seminal a vontade de quererem levar a termo os destinos dos seus amados. Estas Antígonas colombianas não querem deixar os seus familiares “insepultos” de justiça e trazem, por isso, para o palco, transformado em tribunal simbólico, as suas histórias, que tornam possível, não só recordar, mas também dignificar os que perderam.

[12]
"Ai, onde estará o seu corpo?
Ai, onde estará o seu corpo?
Ai, onde estará o seu corpo?
Ai, onde estará o seu corpo?" (Satizábal 2014, 108)

No original: "¿Ay dónde estará su cuerpo?
¿ Ay dónde estará su cuerpo?
¿ Ay dónde estará su cuerpo?
¿ Ay dónde estará su cuerpo?".

 
Figura 4 - Lucero Carmona, uma das Madres de Soacha, associação constituída por mulheres familiares dos homens civis assassinados pelo Exército Nacional da Colômbia, depois de serem injustamente acusados de pertencerem a grupos guerrilheiros, repres…

Figura 4 - Lucero Carmona, uma das Madres de Soacha, associação constituída por mulheres familiares dos homens civis assassinados pelo Exército Nacional da Colômbia, depois de serem injustamente acusados de pertencerem a grupos guerrilheiros, representa-se a si mesma em Antígonas Tribunal de Mujeres. © Guillermo Torres

 
Como o próprio título da peça indicia, o motivo da mesma é levar a tribunal aspetos ainda pouco conhecidos do conflito, ali expressos por meio daquelas Antígonas. O palco, como lugar de encontro, onde se está disponível para ver e para ouvir, tem bastante em comum com o tribunal – o espaço onde se vai para discutir a justiça. A ambos os espaços se vai, e se acede, de uma maneira semelhante. No teatro, aceder ao espaço onde está o palco é aceitar, durante a duração da peça, ser catapultado para dentro do âmbito ali representado. De modo semelhante, no tribunal, aceder à sala onde está o juiz, decisor da justiça, é tornar-se atento a um caso específico, esquecendo tudo o resto.

Todavia, enquanto no tribunal a palavra do juiz, normalmente, ultima um caso ou uma situação, no teatro, assim como na arte, raramente há fechamento. Como reflete Eduardo Pellejero (2017, 11):

«[A arte] não admite ponto final, nem em geral nenhum tipo de pontuação histórica. Diz Guernica e ao mesmo tempo, pelo mesmo gesto, diz Bagdad, Tahrir, Gaza, Ayotzinapa. Intempestivamente, eternamente, apresenta um recurso, e nos torna testemunhas, inclusive do que não vimos nem poderíamos ter visto, colocando-o, através dos artifícios da forma, à nossa frente. De resto, a execução da justiça, o seu devir-mundo, dependem sempre e para sempre de nós».

A encenação de tribunal que Satizábal cria permite, de um modo mais óbvio, trazer um pouco de paz e de justiça àquelas Antígonas colombianas, ali a advogarem, diretamente, sem intermediários ou subterfúgios, as suas próprias posições. Todavia, como essas mulheres e as suas histórias nada mais são do que uma pequena amostra do que a nível nacional sucede, é possível pensar num alargamento do cenário do tribunal a todas as mulheres colombianas que padeceram, de um modo ou de outro, num momento ou noutro, direta ou indiretamente, no conflito. Do mesmo modo, e por analogia, é possível, ainda, pensar num alargamento desse tribunal a todas as Antígonas da história, isto é, todos aqueles que, de diversas maneiras, têm vindo a sofrer, quantas vezes em silêncio, devido a conflitos que quantas vezes nem sequer lhes dizem respeito. Finalmente, a própria Antígona histórica de Sófocles, que não obteve justiça nem foi devidamente julgada inocente dos seus atos, vem também a tribunal e, por meio daquelas mulheres que a personificam, continua a lutar pela sua escolha de enterrar o irmão. Ao afirmar, logo numa das primeiras falas proferidas na peça, «o meu nome é Antígona e há mais de 3000 anos estou a tentar enterrar o meu irmão Polinices» [13] (Satizábal apud Castañeda Cañón 2018, 107), transmite a ideia de que a sua tarefa de enterrar o irmão, leia-se, a de buscar justiça e procurar respostas na lei moral, que está acima da humana, ainda não está terminada.

[13]
«mi nombre es Antígona e hace más de 3000 años estoy buscando a enterrar a mi hermano Polinice»

 
Figura 5 - Quadro Antígona Frente a Polinices Morto (1865), de Nikolos Lytras, que se encontra na Galeria Nacional da Grécia. Esta obra integra a primeira fase da carreira do pintor grego, inspirada na mitologia e história do seu país, correspondent…

Figura 5 - Quadro Antígona Frente a Polinices Morto (1865), de Nikolos Lytras, que se encontra na Galeria Nacional da Grécia. Esta obra integra a primeira fase da carreira do pintor grego, inspirada na mitologia e história do seu país, correspondente à altura em que foi aprendiz de Karl von Piloty, grande pintor realista alemão.

 

De modo complementar, é também possível pensar que ali, naquele “tribunal”, ainda que ausentes, são trazidos à justiça os “Creontes colombianos”, ou seja, todos aqueles que podem ter contribuído para o conflito; os Creontes do mundo, que envolvem todos os que têm contribuído para a criação e a perpetuação de conflitos; e, por último, o Creonte grego original.

Do ponto de vista do leitor e do espectador, estar com aquelas mulheres, em simultâneo, no tribunal, testemunhas das suas histórias e do momento em que, através das suas palavras vindas a público, exigem para si mesmas o início de um processo de renovação e de pacificação, e em tribunal – pois quem é completamente livre de falhas? Quem é, durante toda a sua vida, inteiramente justo? Quem nunca erra, por gestos, ausências, palavras? Quem é, sempre, senhor de si mesmo, e capaz de combater ou de não olhar para o lado aquando das injustiças cometidas a outros? –, transmite um sentido que nos aproxima dos crimes e das injustiças cometidas.  

Estas Antígonas não se tratam de personagens distantes, inalcançáveis, mas antes de mulheres comuns, do dia a dia, de todos os dias e relembram como, a todos os momentos, em todas as sociedades, se corre o risco de, por circunstâncias que ultrapassam os indivíduos, se ver alvo de injustiças e de opressões. 

De cada vez que aparecem em palco, de cada vez que são lidas, estas mulheres, cujas histórias fortemente se entrelaçam na história recente do seu país, transformam palavras e pensamentos até aí descompassados em histórias, histórias doravante cristalizadas em memórias, tornando o passado não morto e enterrado, mas antes pulsante, próximo, passível de ser vivenciado e, até certo ponto, revisitado. E essa é uma das grandes virtudes da criação artística em geral, e do teatro em particular – o dar a ver. Para além do óbvio, do que julgamos que já sabemos, mas, afinal, apenas entrevimos, ou, até, do que totalmente desconhecíamos, podemos aceder a diversas versões colocadas em confronto que nos permitem considerar um acontecimento histórico, mesmo se distante, já ali presente, aproximado, e, partindo das interrogações apresentadas por outros, colocar as nossas próprias questões, aquelas que não se podem esconder por detrás da máscara sempre errónea da verdade ou da certeza. Não nos dizendo como atuar, como pensar, como reagir, esta peça apresenta um conjunto de histórias pessoais, postas à nossa consideração, contribuindo para combater o desconhecimento ou silenciamento em relação às histórias femininas, tantas vezes opressores.

 

Para citar este ensaio:

Souto, Ana Sofia. 2021. “Antígona – O Palco como Tribunal Histórico.” Palimpsesto. www.palimpsesto.online/ensaios/antigona-o-palco-como-tribunal-historico.

 

referências ↓

Aleixievich, Svetlana. 2016. A Guerra Não Tem Rosto de Mulher. Lisboa: Elsionore.

Castañeda Cañón, María José. 2018. “Antígonas Tribunal de Mujeres: Poética de una Memoria Reparadora.” Dissertação de Mestrado, Colômbia: Pontificia Universidad Javeriana. https://repository.javeriana.edu.co/handle/10554/36234.

Chanter, Tina & Sean Kirkland (Eds.). 2012. The Returns of Antigone: Interdisciplinary Essays. Albany: SUNY Press.

Gotsi, Aikaterini. 2012. Irish Antigones. Dissertação de Doutoramento, Reino Unido: University College London. https://discovery.ucl.ac.uk/id/eprint/1344017/1/1344017.pdf.

Mee, Erin & Helene Foley (Eds.). 2011. Antigone on the Contemporary World Stage. Nova Iorque: Oxford University Press.

Pellejero, Eduardo. 2017. “Justiça Poética. A Literatura Além do Ponto Final.” Caderno de Leituras 59, 1-12. https://chaodafeira.com/catalogo/caderno-n-59-justica-poetica-a-literatura-alem-do-ponto-final/.

Satizábal, Carlos Eduardo. 2015. “Memoria Poética y Conflicto en Colombia – A Propósito de Antígonas Tribunal de Mujeres, de Tramaluna Teatro”. Revista Colombiana de las Artes Escénicas 9, 250-268. http://vip.ucaldas.edu.co/artescenicas/downloads/artesescenicas9_22.pdf.

Sófocles. 2000. Antígona. Lisboa: Inquérito.

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